Análise Treinadores

Essência perdida?

A possibilidade de ter treinadores em quadra faz bem ou mal para o tênis?


Se há algo que preocupa nesses tempos modernos, é o quanto podemos ficar preguiçosos, física e mentalmente, graças aos avanços da tecnologia. A calculadora digital, lá nos anos 1970, iniciou a revolução para perdermos menos tempo fazendo contas de somar, subtrair, multiplicar e dividir. Hoje, temos o mundo inteiro sob o comando de um dedo.

Tradicionalmente, as regras fundamentais do jogo de tênis como as conhecemos atualmente têm sido aplicadas desde o torneio de Wimbledon, realizado em 1877, com algumas modificações para que os jogos não ficassem tão longos e pudessem ser televisionados – como o tiebreak disputado quando o jogo empata em seis games.

Na essência do tênis, jogar sem poder receber instruções durante a partida tem sido uma das características que mais encantam seus praticantes. Do ponto de vista do jogador, ele é desafiado a resolver os problemas que o adversário lhe apresenta sozinho. Quando vence, a sensação de “consegui!”, plenifica. Quando perde, não pode aliviar a responsabilidade em cima do companheiro que não passou a bola para ele.

“Resolver problemas por si mesmo é bacana”, já disse o suíço Roger Federer em entrevista coletiva durante o torneio de Indian Wells, em abril deste ano, numa declaração de repúdio à presença dos treinadores em quadra nos torneios da WTA. “A resposta tem de estar dentro de você”, concordou a grande campeã norte-americana dos anos 1980 Chris Evert, durante o mesmo torneio. Homens e mulheres que fizeram e fazem a história do tênis concordam que estar em quadra resolvendo as questões sozinhos é um dos grandes baratos desse jogo que amamos.

Tecnologia é ruim?

Além das intervenções dos treinadores em partidas profissionais femininas, a imprensa especializada vem causando alarde ao anunciar que os técnicos terão acesso, em 2015, a aplicativos para tablets e celulares com tecnologia SAP HANA, que dá acesso às estatísticas do jogo em tempo real. Dessa forma, eles poderiam fornecer às atletas informações precisas sobre os padrões de jogo que estão funcionando melhor contra aquela adversária naquele dia. “Como assim?”

Na tentativa de buscar o equilíbrio entre tradição e tecnologia, podemos usar como critério o que fará melhor ao nosso esporte e aos seus praticantes no longo prazo. Todos os leitores concordam que o Hawk Eye (olho de falcão) – desenvolvido pelo britânico Paul Hawkins em 2001 e experimentado primeiramente no jogo de críquete em 2001 antes de chegar ao tênis e finalmente à Copa do Mundo de Futebol –, teve muito a acrescentar ao esporte em geral e ao tênis em particular, tanto em termos de espetáculo, como em precisão para a arbitragem.

A criação das bolas em quatro velocidades e quadras proporcionais pela Federação Internacional de Tênis em 2008 dentro do sistema Play and Stay, e as regras do Tennis’ 10, obrigando a utilização dessas bolas inclusive em torneios, trouxe muitos novos praticantes ao tênis, tem ajudado na prevenção de lesões no longo prazo e deixou o aprendizado muito mais divertido e saudável para quem começa a jogar. Fato.

O trabalho da IBM iniciado em parceria com a BBC de Londres nos anos 1990, fornecendo a contagem, estatísticas do jogador e, na sequência, o radar de saque, análise das partidas, e em que área da quadra o jogador mais pisou ou para onde disparou mais bolas, sem dúvida fornece dados curiosos que complementam e enriquecem as transmissões do tênis pela televisão.

Num esporte como o nosso, em que a bola é tão pequena, a área tão grande e a precisão a que o tenista precisa chegar em cada rebatida é tão extrema, faz muito mais sentido trazer a mente do jogador cada vez mais para um estado “meditativo” e de fluência, de energia somada à tranquilidade – estados que o jogador realmente só atinge quando consegue controlar sua mente.

Se nós, seres humanos, inventamos na Idade Média um jogo no qual temos a oportunidade de desenvolver qualidades tão importantes nesses tempos modernos – capacidade de resolver problemas, de manter o foco, de manter a tranquilidade sob pressão –, para que e por que desperdiçarmos essa oportunidade enchendo o jogo com distrações?

Ensinar a pensar

Como educadores que somos, de que maneira vamos fortalecer a mente da garotada se eles ficarão à espera do momento em que nós, treinadores, daremos todas as soluções para os seus problemas? Como fortaleceremos sua autoestima e autoconfiança? Como poderão aprender a lidar com as frustrações? Como os ensinaremos a pensar?

Os dirigentes da WTA que me desculpem, mas não posso enxergar benefício algum no fato de as tenistas terem acesso a seus treinadores equipados com tablets e celulares, que não seja o benefício financeiro imediato da instituição que rege o tênis profissional feminino com a divulgação de tais gadgets tecnológicos. Explico. Ou melhor, pergunto.

Como fortalecer a mente de um tenista se ele ficará à espera do momento em que os treinadores lhe trarão as soluções?

Ouvir um treinador russo falando em russo com sua pupila, enriquece o espetáculo? Assistir a uma atleta que está ganhando chamar o treinador, ouvir dele uma série de supostas recriminações (em dinamarquês) e travar logo depois disso para perder o jogo no final, enriquece o espetáculo? Disponibilizar informações estatísticas em tempo real para a atleta será algo que a deixará mais tranquila, ou aumentará sua insegurança (“Consegui identificar os padrões de jogo da minha adversária, ou não?”)?

Cada jogo tem seus atrativos que lhe são peculiares em sua essência, e esses atrativos podem ser potencializados pelo uso da tecnologia, sim, mas não deturpados. O tênis é um jogo no qual não há contato físico direto, as pessoas possuem diferentes personalidades e estilos de jogo, e o ambiente acrescenta os desafios do tipo de piso, vento, sol, iluminação etc. Lidemos com isso.

Esporte coletivo?

Imaginem um jogo de basquetebol em que não houvesse a figura do treinador. Pede-se tempo, e o time conversa sobre decisões táticas a tomar. Como gerir tantos egos em tão pouco espaço de tempo? Será que numa situação dessas – ou no voleibol, futebol e futebol americano – valeria a pena mudar as regras para não existir a figura do treinador em quadra? Num esporte coletivo, a figura de uma pessoa enxergando o jogo de fora e orientando o grupo para um objetivo comum faz parte da essência do jogo. Fato também.

No lado da tradição, podemos concordar sobre a não interferência dos treinadores durante as partidas de tênis. No lado da tecnologia, podemos torcer para que sejam inventados sensores que captem em tempo real os batimentos cardíacos dos jogadores durante o match-point, que mapeiem as áreas do cérebro que estão sendo mais ativadas durante as viradas de lado de final de Grand Slam, e que nos deem acesso às visualizações e ao diálogo interno de um tenista entre um ponto e outro.

Informações que deixam mais ricas as nossas percepções do jogo de tênis são extremamente bem-vindas. Defendemos apenas que um jogo tão inteligentemente criado mantenha sua essência de modo a podermos curtir cada elemento do desafio.

As disputas em duplas, por equipes (estas, sim, permitindo a interferência do treinador em quadra) e a própria prática incluem os elementos de interação e de cooperação, tão importantes para o desenvolvimento de um ser humano pleno. Quer mais ou está bom para você?

Em tempo: na argumentação pela não assistência dos treinadores aos atletas em quadra, Federer ainda lembrou aos jornalistas que muitos atletas profissionais não possuem dinheiro para levar seus treinadores nas viagens. Isso no âmbito profissional. O que diremos dos atletas juvenis em fase de transição para o profissionalismo? Preocupação com a justiça digna de um suíço. E você, o que acha disso?

Por Suzana Silva

Publicado em 21 de Novembro de 2014 às 00:00


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